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“ Não sou católico. Mas fui, e sou interessado na filosofia. Assim como modernismo em literatura, excluídos os poetas, é Proustmann-Joyce, catolicismo é São Paulo-Santo Agostinho-Santo Tomás de Aquino. Não há mais nada. A não ser heresia. “ (Paulo Francis)

E o que estaria fazendo Tomás de Aquino, esse baluarte da ortodoxia católica, em um livro de Alquimia? Será que ele foi um adepto? Tomás de Aquino, o autor da monumental Summa Theologica, à caça da Pedra Filosofal, junto com os hereges? Por incrível que pareça e por menos que suas biografias autorizadas gostem de lembrar desse fato, é a pura verdade. Mas ele não foi um “ soprador ”, reles buscador de ouro. Antes, pelo contrário, via na Grande Obra, como todo verdadeiro alquimista, outro instrumento em sua procura pelo aperfeiçoamento espiritual. Nisso, seguia seu mestre, Alberto Magno, também um importante teólogo, canonizado, e que deixou numerosos trabalhos de Alquimia, dos quais os mais importantes são o Libellus de Alchimia e o Compositum de compositis.

Quanto a Tomás de Aquino, nascido em 1225, em Nápoles, e falecido em 1274 no Mosteiro de Fossanuova, na Itália, a história é um pouco mais complicada. Chegaremos a ela a seu tempo.

Tomás passou sua infância na Abadia de Monte Cassino, onde foi educado pelos monges beneditinos, possuidores de uma das únicas bibliotecas que existiam na Europa por essa época. Depois, foi para a Universidade de Nápoles, onde entrou em contato com a filosofia grega e árabe. Foi nessa universidade que ele recebeu a influência, decisiva em seu pensamento, de Aristóteles e seus comentadores sarracenos, A vicena e Averroés. Ao mesmo tempo, resolveu enviá-lo para a Universidade de Paris. Sua família, que não gostou nem um pouco da ideia, tratou de raptá-lo no meio do caminho, prendendo-o no castelo da família, e tentando fazer o moço desistir. Em vão. No ano de 1245, a Ordem manda-o pela segunda vez a Paris, agora sem nenhuma interferência familiar.

Consta que, durante a viajem, passou por Colônia, onde ficou durante algum tempo com Alberto Magno. Outra versão diz que Tomás ficou conhecendo a filosofia do sábio doutor em Paris,  cidade na qual permaneceu até 1248. Seja como for, ao voltar de Paris, seguiu para Colônia, onde aprofundou seus conhecimentos com Santo Alberto no Studium Generale que esta havia fundado. E coube a Santo Tomás concluir a grandiosa síntese científica, filosófica e teológica iniciada por Alberto Magno.

Retornou a Paris em 1256, como professor de Teologia. Encontrou alguma resistência por parte do clero secular, algo incomodado pela presença de um frade entre o corpo docente na Universidade de Paris, mas, mesmo assim, permaneceu lá até 1259, quando foi para Roma lecionar na cúria papal. Dez anos depois, retornou a Paris para tomar parte das controvérsias que envolviam o monge franciscano S. Boaventura finalmente, em 1272, vamos encontra-lo na Universidade de Nápoles, na qual começara seus estudos, fechando assim o círculo da sua vida: morreria dois anos depois, a caminho de Lion, convidado pelo Papa para assistir o concílio.

Existem pelo menos três textos de Alquimia em que o autor se identifica como Santo Tomás de Aquino: A arte da Alquimia, A pedra filosofal e Aurora Consurgens. A opinião que vem sendo mantida até o presente é que eles fazem parte da literatura pseudoepígrafa – ou seja, que foram escritos por algum alquimista que os atribuiu ao santo doutor para lhes emprestar maior autoridade. No entanto, existem nos livros canônicos de Tomás de Aquino evidências bastante claras que, Adepto ou não, ele estava bastante familiarizado com essa arte. Um exemplo é a edição de quatro de seus livros publicada em Paris, em 1659 (Sancti Tomae Aquinatis in quatro libros sennentiarum Patri Lombardi). No Livro II, Distinção VII, Questão III, Solução 6, consta: “(Sicut) Alchymistae facciunt aliquidsuro quantum ad accidenta exteriores: sed tamen non faciunt vertum aurum: quai forma substantialis auri nor est per calorem ignis utunturaalchymistae sed per calorem solis in loco determinato ubi viget virtus mineralis. It ideo tale aurum non habet operation consequentem species. Et similiter in aliis, quase per corum operationem  fiunt.”

Ainda outro dado pertinente: A arte da Alquimia termina com a seguinte passagem:

“Aqui termina o Tratado, Frei Tomás de Aquino, da ordem dos Pregadores de São Domingos, sobre a multiplicação alquímica, dedicado ao seu irmão dileto e amigo em Jesus Cristo, Frei Reginaldo, para o Tesouro Secretíssimo. ”

Ora, trata-se de Reginaldo de Piperno, que acompanhou o santo, como criado, até o fim de seus dias.  Se isso não prova que o livro saiu mesmo da pena de Tomás de Aquino, demonstra pelo menos que seu autor conhecia bem a biografia deste.

Mas é a Aurora Consurgen que fornece os argumentos mais fortes.

Certa vez, vasculhando uma coleção de livros antigos na Suiça, o Dr. Carl Gustav Jung descobriu um trabalho intitulado Aurora Consurgens, Segunda Parte, acompanhado de uma nota informando que se omitira a primeira parte, acompanhado de uma nota informando que omitira a primeira parte por se considera-la blasfema. A curiosidade do famoso psicólogo foi despertada por essa nota, e ele examinou várias bibliotecas da Europa em busca da parte censurada. Acabou descobrindo que o mosteiro da ilha Reicheneau, ao lago de Constança possuíra uma versão em estenografia latina do século XV desse trabalho, a qual se encontrava agora na Biblioteca Central de Zurique. No entanto, mesmo essa versão estava incompleta. Ele passou-a para sua discípula três outros manuscritos, respectivamente em Paris, Bolonha e Veneza. Cotejando todas as versões, os dois psicólogos acabaram conseguindo reconstituir o texto completo, resolvendo publicá-lo como Terceira Parte de uma das últimas obras de Jung, Mysterium Coniunctionis. Coube à Dra. Von Franz escrever uma introdução histórica sobre o livro. Ela diz:

“Parti do pressuposto de que, embora o texto tivesse sido atribuído a Santo Tomás de Aquino, isso esteva naturalmente fora de questão. Eu pretendia continuar dizendo que se tratava de um texto do século XIII e nada mais. Mas, depois, pensei que, como conhecia apenas dados superficiais acerca de Santo Tomás de Aquino, por que razão haveria eu de escrever semelhante coisa? “

Portanto, por desencargo de consciência, a Dra. Von Franz resolveu estudar alguma coisa de Santo Tomás de Aquino. E isso acabou mudando sua opinião sobre o Aurora Consurgens.

Como psicóloga, ela analisou o texto do ponto de vista de sua especialidade, concluindo que ele tinha sido escrito por um moribundo: “Todo o simbolismo gravita em torno do problema da morte e nele se concentra; no final, há uma descrição do casamento místico, ou por experiência de amor, apresentada numa forma que parece relacionar-se com as experiências pela qual, como se sabe, passavam muitas pessoas agonizantes , resultando na tradição de que a morte é uma espécie de casamento místico com a outra metade da personalidade.”

Pois bem, as biografias de Santo Tomás dão conta de que, bem pouco tempo antes de morrer,

Ele passou por profundas modificações em sua personalidade, com a irrupção de uma veia mística que o fazia entrar em êxtase mesmo enquanto celebrava missas. Durante um ofício religioso em Nápoles, na presença de um cardeal, mergulhou num transe que o observou durante vinte minutos.

Reginaldo de Piperno conta como, um dia, depois de rezar uma missa, o santo ficou lívido, sentando-se diante de sua escrivaninha, com a cabeça enterrada entre as mãos. “Pensei que ele havia enlouquecido”, disse Reginaldo. Santo Tomás estivera escrevendo o capítulo de sua Summa sobre a penitência e, quando seu criado lhe perguntou por que não continuava a escrever, respondeu: “ Não posso. ”

Uma semana depois, afirmou que não podia porque tudo o que tinha escrito lhe parecia ser apenas palha. Versões posteriores à de Reginaldo acrescentarão que pareceria palha “em comparação com as magníficas visões que tivera”.

Durante sua viajem para Lion, foi derrubado de sua montaria por um galho de árvore. Não apareceu um incidente de grande importância, mas, nesse dia, ao cruzar os portões do Mosteiro de Santa Maria di Fossanouva, foi acometido de vertigens “isto” – disse – “é a minha morte chegando, não escaparei dessa vez. ”

Os monges do convento pediram que ele lhes desse um seminário e, mesmo fraco, o santo concordou. Proferiu uma aula a respeito do “Cântico dos Cânticos”. Morreu ao começar a interpretar o versículo: “ Vem meu bem-amado saiamos para o campo. ”

Nunca se soube que fim tiveram as notas desse seminário, que a biografia oficial de Santo Tomás, que serviu de base para sua canonização, passa por alto. A Dra. Von Franz achou isso estranho, considerando a importância que as últimas palavras de um santo geralmente ocupam em sua biografia. A não ser que as “famosas derradeiras palavras” não fossem ortodoxas…

“Depois de ler os depoimentos acima, ” – comenta a psicóloga – “comecei a alimentar a terrível suspeita de que a Aurora Consurgens poderia, na verdade, ter-se originado nos apontamentos do último seminário de Santo Tomás de Aquino (…) o texto é uma paráfrase do “Cântico dos Cânticos” e o último capítulo termina exatamente no mesmo lugar onde, de acordo com a tradição, frei “Tomás morreu.”

Os estudos da Dra. Von Franz ainda não foram oficialmente julgados pelo vaticano. Um padre dominicano, especialista em Santo Tomás e professor de teologia, declarou à autora que suas conclusões faziam sentido, mas isso numa conversa particular. No entanto, é altamente sintomático que a última palestra de um santo do porte de Tomás de Aquino tenha versado sobre a interpretação alquímica das Sagradas Escrituras.

Para Anto Tomás, a Esposa, no “Cântico dos Cânticos”, é uma personificação da sabedoria de Deus que, segundo a teologia medieval “representa a soma de todos os arquétipos”, como explica a Dra. Von Franz, “os archetypi ou ideias eternas da mente de Deus quando ele criou o mundo”. Da Sabedoria o Aurora Consurgens diz:

“Todas as boas coisas me chegam através dela, a Sabedoria do Sul, que se lamenta nas ruas, convocando as gentes, e que fala na entrada da cidade: Vinde a mim e sede iluminados, e vossas ações não serão confusas. Todos os que me queiram serão cumulados de minhas riquezas”.

“Vinde meus filhos, e escutai, pois, eu vos ensinarei a Sabedoria de Deus, que é sábio e entende aquilo a cujo respeito Alfídio diz que adultos e crianças pisam na rua, que é calcada todos dias pelas patas dos animais na estrumeira de que Senior diz nada haver de mais desprezado exteriormente e nada de mais precioso na natureza, e Deus não o deu para ser comprado com dinheiro.

“Ela, a sabedoria, é aquilo que Salomão diz que devemos usar como uma luz, e ele colocou-a com o valor dela. O ouro, em comparação com ela, é areia e a prata, em comparação com ela, é como barro. Isso é muito verdadeiro, pois adquiri-las é mais importante é mais importante do que o mais puro ouro e a mais pura prata. Seus frutos são mais preciosos do que as riquezas do mundo inteiro e tudo o que possamos querer não sofre comparação com ela.

“A vida longa e a saúde estão em sua mão direita, e a glória e imensas riquezas em sua mão esquerda. Seus métodos são belas obras dignas de louvor, não desprezíveis nem ruins, e seus caminhos são medidos e não apressados, mas ligados com persistente e contínuo trabalho árduo. Ela é a arvore da vida para todos os que a compreendem e uma luz que nunca se extingue.

“Bem-aventurados são aqueles que a entenderam, pois a Sabedoria de Deus nunca morrerá, do que o Alfidio dá testemunho quando diz que aquele que chegar a descobrir esta Sabedoria terá dela nutrimento legítimo e eterno, Hermes e os outros filósofos dizem que, se um homem tiver esse conhecimento por mil anos e tiver que alimentar sete mil pessoas diretamente, ele ainda terá o bastante, e Senior diz que tal homem é tão rico quanto o homem que possui a Pedra Filosofal, da qual pode obter e assim dar fogo a quem quer que o deseje.”

Como se depreende dessa citação, Tomás de Aquino identificava explicitamente a Sabedoria de Deus com a matéria-prima e a Pedra Filosofal, aplicando sobre aquela todos os lugares-comuns que os alquimistas tecerem sobre estas. Para obtê-la, afirma logo depois, só é preciso uma sutil percepção de verdadeira natureza da realidade, o que inclui, é claro, o conhece-te a ti mesmo filosófico. De fato, o Aurora Consurgens é um dos textos que, com suas referências simultâneas à Bíblia e aos escritos alquímicos, melhor consegue articular as práticas materiais de laboratório com a transmutação interior e espiritual de Adepto:

“Sê feliz, Jerusalém, reuni-vos em prazer porque Deus teve piedade dos pobres, e Senior diz que existe uma pedra que, se alguém a encontrar, a colocará sobre seus olhos e nunca a jogará fora porque é o elixir que expulsa toda aflição e, além de Deus, o homem não possui coisa melhor. ”

Em outro trecho, Tomás de Aquino lembra o filósofo grego Heráclito, que ensinava que os seres humanos fogem do Espírito e por isso são como estúpidos sonâmbulos, presos a seus condicionamentos estreitos e à mesquinharia dos costumes; para o santo, a Alquimia é o remédio que Deus deu aos homens para se curarem, mas isso só é possível se eles voluntariamente buscarem sua salvação:

Essa ciência de Deus e ensinamento dos santos, o segredo dos filósofos e elixir dos doutores, é desprezado pelos néscios que ignoram o que isso seja. Eles rejeitam a benção de Deus e é melhor que não a recebam porque quem quer que não conheça isto é seu inimigo, sendo esta a razão pela qual Speculator diz que zombar dessa ciência é a causa de toda ignorância e que não se deve dar salada a burros que se satisfazem com cardos, e não se devem jogar pérolas a porcos, etc. Devemos falar aos néscios como as pessoas que estão adormecidas, e nunca devemos colocá-los ao nível do sábio. Sempre haverá pobreza e infelicidade no mundo porque o número de todos é imensamente grande. “

Por outro lado, para aqueles que tomarem consciências de sua situação e buscarem a ciência de Deus, o santo promete um futuro auspicioso, digno das profecias messiânicas às quais ele pediu emprestada a fraseologia:

“A sabedoria construiu uma casa e os que nela entram serão abençoados e encontrarão alimento espiritual, de acordo com o testemunho do profeta. Inebriar-se-ão com a superabundância de tua casa, pois um dia nos teus átrios vale mais do que mim (Salmo 84:10) Bem-aventurados os que residem em tua casa. Pede e ser-te-á dado, busca e acharás, bate e para ti será aberta. A sabedoria grita nos portões diz: Vede, estou ante a porta e bato; se algum homem escuta minha voz e abre a porta, eu virei até ele, e cearei com ele, e ele comigo.

“Quão grande é a plenitude de doçura que guarda escondida para os que entram nesta casa, uma doçura que nenhum olho viu nem ouvido ouviu, nem penetrou no coração dos homens. Os que abrem esta casa terão a santidade e a plenitude dos dias, pois ela está construída sobre uma sólida rocha, a qual só será dividida pelo sangue do bode, ou quando golpeada três vezes pela vara de Moisés, quando a água tiver jorrado abundantemente e a congregação bebido e suas besta também. “

 

Fonte: LIVRO ALQUIMIA AMIX SOLRAC Extraído de: Amix, S. Alquimia. São Paulo, SP: Traço Editora, 1990.

 

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